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Um golpe contra a política

Ao retirar uma presidente eleita por razões evidentemente políticas, o impedimento da Dilma é um golpe contra a democracia. Español English

Juliano Fiori
26 Setembro 2016
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Michel Temer cumprimentando o Presidente do Tribunal Supremo, Ricardo Lewandowski, perante Renan Calheiros, o Presidente do Senado, durante a investidura de Temer. 31 agosto 2016, Brasília. AP Foto/Eraldo Peres. Todos os direitos reservados.

A Banda dos Fuzileiros Navais iniciou o hino nacional e ergueu-se um Senado lotado. Atravessando um mar de cabeças calvas, raramente interrompido por ombreiras cor de malva ou carmesim, a câmera da TV Senado focou na figura do Michel Temer, cujos lábios se curvaram levemente enquanto palavras escapavam pelo lado de sua boca, como num ato de decepção ventríloqua. ‘Mas, se ergues da justiça a clava forte/Verás que um filho teu não foge à luta’.

Pouco mais de duas horas depois da votação a favor do impeachment da Presidente Dilma Rousseff, na mesma câmara, Temer foi empossado novo presidente da república. No Palácio da Alvorada, Dilma, vestida com o vermelho de seu partido, cercada por apoiadores, declarou a uma matilha de jornalistas que havia sido destituída por um golpe de estado.

Golpes e governos não eleitos são a regra no Brasil, não a exceção. Da criação da república em 1889 a este mais recente experimento de democracia representativa, rupturas são o que mais definem a política brasileira. Rupturas que, mesmo distintas nas suas consequências e nos seus desígnios, sempre foram apresentadas por seus arquitetos como necessárias para modernizar o Brasil e impulsionar o ‘país do futuro’ para o seu destino. A História tem sido o pretexto para a politicagem cínica, a intriga, e a sabotagem que têm reconfigurado, e geralmente diminuído, o espaço para contestação democrática. A História tem passado por cima da política, com o ideal positivista de ‘ordem e progresso’ proclamado como orientador da transformação de uma atrasada ‘republica de bananas’ a um estado-nação sério, civilizado, e desenvolvido.

Golpes e governos não eleitos são a regra no Brasil, não a exceção.

O impeachment de Dilma representa mais uma ruptura na democracia brasileira, embora uma que não implique em uma quebra substantiva dos fundamentos da constituição. Os contornos do golpe formaram-se no alinhamento de condições que possibilitaram o processo parlamentar, e na convergência de interesses de um conjunto de políticos corruptos e uma oposição indignada por ter perdido uma quarta eleição consecutiva. ‘Tem que mudar o governo para poder estancar essa sangria’ é a frase do Senador Romero Jucá, gravada em conversa com Sergio Machado (ex-presidente da Transpetro), que melhor demonstra esses interesses. E o golpe materializou-se quando os senadores decidiram que os três decretos de crédito suplementar e o atraso no repasse de dinheiro ao Banco do Brasil constituiriam crimes de responsabilidade, assim aceitando uma interpretação inédita e post-hoc das leis orçamentárias, nunca antes aplicada a presidentes e governadores por atos semelhantes.

Ao retirar uma presidente eleita por razões evidentemente políticas, o impedimento da Dilma é um golpe contra a democracia. Pelo menos no curto prazo, Brasileiros não terão a possibilidade de contestar diretamente um projeto político que têm rejeitado repetidamente nas urnas. A proposta da ‘Ponte para o Futuro’ revela que o impeachment é mais um golpe na política em nome da História. E este golpe contra a política é bem contemporâneo. Ao seguir o rito formal da constituição, é um golpe em nome do constitucionalismo. Ao criminalizar a suposta prodigalidade e o assistencialismo, é um golpe em nome da responsabilidade fiscal e do senso comum da era neoliberal.

Pelo menos no curto prazo, Brasileiros não terão a possibilidade de contestar diretamente um projeto político que têm rejeitado repetidamente nas urnas.

Os equívocos e transgressões do governo PT tiveram um papel crucial no seu próprio colapso. Se, por um lado, os anos de governo petista não confirmam a ideia deleuziana que não há governo da esquerda, por outro, deixam um registro dos vários desafios enfrentados por um partido heterogêneo de esquerda quando é escolhido para governar, e tem de fazer compromissos e formar alianças. Por enquanto, a esquerda brasileira buscará renovação e unificação principalmente nas ruas: um ambiente mais habitual.

O PT no poder desenvolveu seu próprio modelo de anti-política: um moralismo que endemoninhou oponentes (e acabou ferindo o próprio partido a partir do mensalão); um culto à personalidade que desviava a atenção das políticas para a história e o caráter do Lula; e uma rejeição de divergências sobre política econômica que alimentou um anti-intelectualismo. A anti-política temerista já está parecendo muito mais sinistra. Numa terra ‘patas arriba’ galeaniana, onde um golpe é apresentado como o exercício da autoridade legal, e políticos corruptos são parabenizados por seu comportamento exemplar na execução do mesmo, velhas ‘canalhices’ características da elite política brasileira só hão de florescer.

A cerimônia de posse de Temer foi presidida por Renan Calheiros, sujeito a onze denuncias, principalmente por corrupção. Após a confirmação da posse, o presidente do Senado virou-se para Temer, segurou a sua mão, e, à sotto voce mas ainda audível pelo microfone, falou: ‘Estamos juntos’. Como se houvesse alguma dúvida!

Esta é uma versão curta, traduzida de um artigo escrito em inglês, também publicado na DemocraciaAbierta.

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