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Brasil: “sem mulheres, não há democracia”

No meio dos gritos de “Fora Temer!”, as feministas estão lembrando ao Brasil a necessidade de reinstaurar Rousseff no cargo e de garantir os direitos humanos e a dignidade social. Español  English

Ani Hao
22 Julho 2016
Duas mulheres juntam-se a milhares de mulheres negras de todo o Brasil num protesto contra a violência e a discriminação em Bras

Duas mulheres juntam-se a milhares de mulheres negras de todo o Brasil num protesto contra a violência e a discriminação em Brasília, Brasil. 2015. AP/Eraldo Peres. Todos os direitos reservados.

No meio de uma crise política social e econômica de proporções históricas, as mulheres brasileiras estão empenhadas na construção, de uma rede de solidariedade feminista para lutar pelos seus direitos e reclamar uma sociedade mais justa e inclusiva. A primeira mulher eleita como presidente do país, Dilma Rousseff,  foi afastada do cargo por um período de 180 dias e enfrenta-se destituída. Desde que o governo interino de Michael Temer – formado exclusivamente por homens brancos – assumiu o poder, o Foro Econômico Mundial (FEM) calculou que o Brasil cairá da 85º para a 107º posição no ranking mundial de equidade de gênero do FEM.

Quando ainda era presidente, Rousseff e o seu governo nem sempre mantiveram uma relação de afinidade com os diferentes movimentos feministas. Tendia a existir uma linha de separação muito marcada entre feministas que tentavam trabalhar com o governo para melhorar as politicas públicas voltadas para mulheres, e aquelas que as rejeitavam aludindo à falta de avanços na área dos direitos reprodutivos, à falta de presença de mulheres na política e à falta dos temas de gênero na educação, entre outras questões.

Mesmo assim, muitas feministas estão de acordo com que a campanha por sua destituição foi machista e discriminatória. Muitos brasileiros de direita usaram expressões que pontuam violência sexual para ridiculizar Dilma, enquanto as principais revistas brasileiras publicaram historias nas quais afirmavam que a presidente é histérica ou que, se encontrava mentalmente destabilizada. Além disso, muitos políticos homens cometeram as pedaladas fiscais –  usando fundos procedentes de bancos públicos para financiar programas federais ou estatais, sem que isso tenha gerado consequência alguma para eles – mas também que aqueles que votaram favoravelmente à destituição da presidente se encontram respondendo a processos judiciais acusados de delitos de corrupção para lucro pessoal. Ainda que uma serie de auditores independentes não tenham encontrado nenhuma prova de que Rousseff esteja envolvida em casos de pedaladas fiscais, poucos acreditam que a mesma não seja exonerada no julgamento político a que será submetida.

Desde a destituição de Dilma, milhares de mulheres se unirem por todo o país em solidariedade com ela. Novos movimentos, como Mulheres pela Democracia, surgiram em seu apoio, ao mesmo tempo que houveram manifestações de protestos de mulheres perante a injustiça da sua destituição e as implicações que tem para o seu futuro.

O Congresso mais conservador desde o final da ditadura militar é agora responsável tanto pelo golpe politico como pelos ataques crescentes contra os direitos das mulheres no país. Antes que a destituição da presidente fosse uma possibilidade real, os políticos da direita aprovaram uma série de projetos de lei que retrocedem os direitos das mulheres, entre eles o que define um feto como uma pessoa desde o momento da concepção e o que introduz na constituição a definição de “família” como a união de um homem, uma mulher e os filhos de ambos. Apresentaram-se também projetos de lei para proibir a discussão de gênero no Plano de Educação Nacional e para restringir ainda mais o acesso ao aborto  em casos de estupro. Também criaram medidas para dificultar o acesso à contracepção de emergência e para aumentar as penas sobre o aborto, coincidindo com a eclosão da crise do Zika vírus..

Enquanto isso, os velhos problemas permanecem: a violência contra a mulher é endêmica e aliada a  uma ampla aceitação da violência sexual na sociedade. O aborto ainda é criminalizado e todo ano  aproximadamente  ocorrem um milhão de abortos clandestinos no Brasil.

Desde o ano passado, as mulheres lutaram contra essas questões em maior número e com renovada energia. Em outubro, durante o que foi chamado a 'Primavera das Mulheres', centenas de milhares de brasileiras protestaram nas ruas e nas redes sociais contra a violência sexual, a pedofilia e a proposta de uma lei sexista que limitam os seus direitos reprodutivos.

As adolescentes e as jovens estão usando as redes sociais e a tecnologia para se informar, debater e se mobilizar. Participaram em números históricos de diálogo sobre feminismo através de campanhas na internet, como o #MeuPrimeiroAssedio  e  #ForaCunha.

Entre outubro de 2015 e janeiro de 2016, a procura da palavra “feminismo” no Google cresceu um 86% no Brasil, e “empoderamento feminino” mais de 300%. Muitas mulheres começaram a se identificar como feministas e até começaram a utilizar palavras novas, como a palavra “sororidade” (irmandade entre mulheres), que não existe nos dicionários brasileiros e era praticamente desconhecida até 2015.

Em junho, centenas de milhares de mulheres manifestaram-se no Brasil e na Argentina sob a bandeira “Por todas elas”, em protesto contra a cultura do estupro, após o caso onde 33 homens estupraram uma adolescente de 16 anos no Rio de Janeiro no fim de maio.

Agora Juntas, uma rede de coletivos feministas e de mulheres do Rio de Janeiro – onde sou fundadora – está construindo uma casa colaborativa feminista para promover uma maior colaboração e solidariedade entre ditos objetivos. Muitos grupos feministas carecem de recursos e trabalham fisicamente e estrategicamente isolados. Os grupos de feministas jovens, em particular, não dispõem de espaços próprios onde possam se reunir.. Agora Juntas está trabalhando na construção coletiva de um local colaborativo para fortalecer a sociedade feminista, as redes e a inovação.

A solidariedade feminista não é simples: implica construir transversalmente e reconhecer as diferentes linhas – de partido, pessoais, sexuais, raciais, intelectuais –, ao mesmo tempo que trabalhar em prol de metas e objetivos comuns. As diferenças identitárias e históricas não desapareceram – por exemplo, as feministas negras foram historicamente marginalizadas das “prioridades” feministas e da liderança das organizações e movimentos mais estabelecidos. De forma que criaram as suas próprias organizações, eventos e prioridades. Em 2015, ocorreu a primeira Marcha Nacional de Mulheres Negras no Brasil, o que representa um aumento da visibilidade e da força da mobilização feminista negra. As jovens feministas também estão em espaços diferentes das feministas mais velhas – muitas jovens  pertencem a coletivos de base informal e concentram-se no trabalho de consciencialização e diálogo através de atividades artísticas e campanhas em vez de processos formais de diálogo politico. Mas no cenário político  atual urgente, as feministas de origens, contextos e lugares diferentes uniram-se para articular a sua luta contra o conservadorismo politico, econômico, social e religioso que se recusa a reconhecer os seus direitos e a necessidade de avanços para a mulher no Brasil.

Infelizmente, apesar do aumento da mobilização feminista, a situação continua a ser sombria. O novo governo de Michel Temer demonstrou a sua posição retrograda em relação aos direitos das mulheres, das minorias e das comunidades indígenas. Sob o seu governo formado somente por homens brancos, os políticos conservadores estão tentando mudar a Lei Maria de Penha, que aumentou as penas por violência doméstica, oferece apoio às vitimas de violência doméstica e sexual e representa uma conquista histórica. Este projeto de lei, atualmente à espera da sua aprovação final no Senado, permite à policia conceder medidas de proteção às mulheres afetadas; neste momento, o poder judicial é o único que pode fazê-lo. O insulto final às mulheres foi a nomeação da conservadora Fátima Pelaes como Secretária de Estado de Politicas da Mulher. Pelaes declarou no passado contra a opção do aborto para mulheres que foram violadas.

No seu ensaio O Golpe Patriarcal, a socióloga Maria Betânia Ávila, pesquisadora do SOS Corpo Instituto para a Democracia e membro da Articulação de Mulheres Brasileiras, escreve: “O movimento feminista (no Brasil) mostra sua força e sua capacidade de resistência e mobilização em defesa do mandato da primeira mulher presidenta da República do Brasil, e da legalidade democrática.  É um confronto contra o patriarcado, aberto e explícito que não admite camuflagens. Contra os machistas e neoliberais e contra tudo que eles representam.”

No meio dos gritos de “Fora Temer!”, as feministas estão lembrando ao Brasil a necessidade de reinstaurar Rousseff no cargo e de garantir que os futuros governos implementam reformas e levam a cabo políticas públicas que garantam os direitos humanos, a dignidade social e combatam a desigualdade. Até então, continuaremos a gritar: “Sem mulheres, não há democracia. Sem feminismo, não há democracia”.

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Uma versão anterior deste artigo foi publicada originalmente em inglês pelo The Guardian.

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