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Fazendo um balanço do progressismo

O ciclo progressista na América Latina parece viver os seus últimos dias enquanto que o estado de debilidade dos movimentos sociais augura tempos difíceis para os setores populares. Español. English 

Raúl Zibechi
1 Setembro 2015
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Complexo do Alemao. Rio de Janeiro. Flick. Alguns direitos reservados.

Na medida que o ciclo progressista latino-americano está a terminar, parece o momento adequado para começar a fazer um balance geral, que não se detenha nas conjunturas ou em dados secundários, para nos ir aproximando a um panorama global. Sobra dizer que este fim de ciclo está a ser desastroso para os sectores populares e os sectores de esquerda, o que nos enche de incertezas e preocupação pelo futuro imediato, sobretudo pelo desvio à direita e pela repressão à que nos deveremos enfrentar.

Falar de  progressismo pode soar demasiado indolente, porque nessa categoria podem entrar processos bem diferentes. Entendo por progressistas aqueles governos que têm tentado mudanças em relação ao Consenso de Washington, mas nunca aspiraram a transcender o capitalismo na sua fase extrativa e financeira.

Os governos de Brasil, Argentina, Uruguai, Chile e Equador, bem como Paraguai quando foi governado por Fernando Lugo, entram claramente nessa categoria. Os casos da Venezuela e Bolívia merecem um tratamento aparte, já que têm declarado a sua vontade de transcender a realidade que herdaram e não de tão só a administrar.

Porquê incluir o governo equatoriano de Rafael Correia nessa lista? Porque a relação com os movimentos sociais faz a diferença. Os movimentos populares de Equador, indígenas, operários e estudantis, estão a convocar uma grande manifestação nacional para o 13 de agosto contra um governo autoritário, que persegue dirigentes e organizações populares.

Em toda a região sul-americana estendem-se as campanhas mediáticas por parte das direitas e dos grupos empresariais, alentados pelos Estados Unidos, para modificar os equilíbrios de forças a seu favor. Mas assistimos também a uma reativação dos movimentos populares, de modo particular no Brasil, Chile, Equador e Peru, sempre em contramão a um modelo que segue concentrando a riqueza e em frente a governos que não têm realizado mudanças estruturais.

Na minha opinião, é no Brasil onde se está a produzir um debate mais profundo sobre os doze anos de governos do Partido dos Trabalhadores (PT) encabeçados pelos presidentes Lula dá Silva e Dilma Rousseff. Talvez porque Brasil representa a metade da região sul-americana em termos de população e produção, pela sua inegável transcendência regional e global e, sobretudo, porque o PT foi criado desde baixo por sindicalistas, ex-guerrilheiros e comunidades eclesiais de base sendo o maior partido de esquerda de América Latina, o impulsor dos foros sociais com os movimentos e do Foro de São Paulo com os partidos de esquerda.

O filósofo marxista Paulo Arantes, situado à esquerda do PT e referente em boa parte dos debates sobre as esquerdas, sustenta que o país e a esquerda estão cansados e exaustos. «Esgotámos por depredação extractivista o imenso reservatório de energia política e social armazenado ao longo de todo o processo de saída da ditadura», sustenta numa de suas últimas intervenções (“Correio dá Cidadania”, 15 de julho de 2015).

A energia esgotada é de carácter ético, e é a que permitiu a criação do PT, a partir da central sindical CUT e do Movimento Sem Terra, as principais organizações sociais e políticas do país. A exigência de resultados rápidos, «uma deterioração social jamais vista», que resume «o direito dos pobres ao dinheiro», é na sua opinião uma das chaves do fim de ciclo ao que se assiste. Onde sempre se tinha priorizado a dignidade da classe trabalhadora, aparece uma faixa de preocupações que se centram em administrar em vez de transformar, apostando tudo no crescimento da economia, sem mais objetivos.

O sociólogo Francisco de Oliveira é um dos intelectuais mais respeitados. Foi fundador do PT nos estertores da ditadura (1980) e depois do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) quando o Governo de Lula implementou reformas neoliberais (2004). Acunhou o conceito de «hegemonia ao contrário» para explicar como os ricos consentem ser politicamente conduzidos pelos dominados, com a condição de que não s questionasse a exploração capitalista. Na sua opinião isso sucedeu tanto no Brasil como na África do Sul sob os governos do Congresso Nacional Africano.

Num artigo de 2009 realizou uma afirmação valente e polémica: «O lulismo é uma regressão política» (Piauí, outubro de 2009). Naquele momento, no último ano do segundo Governo de Lula, a afirmação parecia fora de lugar, ainda que muitos brasileiros de esquerda a partilhassem. De facto, nas eleições presidenciais de 2006, Heloísa Helena, (expulsada do PT por negar-se a votar a reforma previsional) obteve 6,5 milhões de votos como candidata do PSOL, quase o 7% dos votos totais.

Seis anos após aquela sentença, no meio de um ajuste neoliberal que vulnera direitos sociais e com um escândalo de corrupção alucinante (Dilma reconheceu que os dinheiros subtraídos equivalem a um ponto do PIB), podemos voltar a perguntar-nos se o progressismo foi uma regressão ou um passo à frente.

Um dos argumentos centrais de De Oliveira é que os governos de Lula e Dilma provocaram uma grande despolitização da sociedade, em grande parte porque a política foi substituída pela administração e porque «se cooptaram centrais sindicais e movimentos sociais, entre eles o Movimento dos Sem Terra, que ainda resiste».

Neste ponto, as análises bifurcam-se. Não só em Brasil senão na esquerda de toda a região. Uma parte sustenta que os governos progressistas foram um avanço, sendo seu principal argumento que reduziram a pobreza levando aos níveis mais baixos na história recente. Nessa redução aparecem dois elementos a considerar: por um lado, o crescimento económico permitiu que mais pessoas se incorporem ao mercado de trabalho. Por outro, as políticas sociais e o aumento do salário mínimo jogaram um papel inegável na queda da pobreza.

Mas outro sector, no que me incluo, argumenta que não supôs mudanças significativas na desigualdade, nem reformas estruturais, que teve desindustrialização e se registou uma re-primarização das economias (centralidade das exportações de bens primários). Neste sentido pode-se afirmar que o progressismo não foi um avanço.

Mas foi um retrocesso como argumenta De Oliveira? Se colocamos a política no centro, as coisas adquerem outra tonalidade. A política, desde uma visão de esquerda, gira à volta da capacidade dos sectores populares de organizar-se e mobilizar-se para debilitar ao poder económico e político, e abrir assim as possibilidades de mudanças.

Desde este ponto de vista, a energia popular latino-americana tem sido fortemente desgastada pelo progressismo. As grandes mobilizações de junho de 2013 no Brasil, que foram criticadas pelo PT porque supostamente favorecem a direita, são um claro exemplo das mudanças que houve tanto acima como embaixo.

O problema consiste agora em como enfrentar a ofensiva das direitas com sociedades despolitizadas e desorganizadas, porque a esquerda dilapidou a energia social acumulada durante as ditaduras. Não é, de facto, a única região do mundo onde isto sucede.

A três décadas de distância, foi a chegada do PSOE ao governo do Estado Espanhol, um passo adiante ou um retrocesso? Não pretendo comparar o socialismo europeu com o progressismo latino-americano, senão reflexionar sobre como se produziu a perda da energia social, em ambas situações.

Este artigo foi publicado por La Brecha, Uruguai.

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