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Lula, de mágico a franco-atirador

Lula procura descolar-se do “seu” Partido dos Trabalhadores e do governo que contribuiu a eleger, para erigir-se como líder dos indignados contra a corrupção e a crise. English. Español.

Raúl Zibechi
20 Julho 2015
Presidente Lula e a presidente eleita, Dilma Rousseff, comemoram a vitória no Palácio da Alvorada, em Brasília (DF). Foto Ricardo StuckertPR 10 de noviembre de 2010_1.jpg

Lula da SIlva e Dilma Rousseff em 2010. Ricardo Stuckert/Flickr. Some rights reserved.

Quando Marcelo Odebrecht, presidente da principal construtora do Brasil e uma das 25 maiores do mundo, foi preso no dia 19 de junho no marco das investigações sobre corrupção na Petrobras, acenderam-se todos os alarmes no governo de Dilma Rousseff, no paralisado Partido dos Trabalhadores (PT) e no conjunto da esquerda brasileira. A mensagem era clara: o próximo podia ser Lula. O ex-presidente foi o primeiro a reconhecer que sua proximidade com Odebrecht, cuja empresa lhe financiou campanhas eleitorais e viagens, o colocava inevitavelmente na linha de tiro dos investigadores.

Uma semana antes, no dia 13 de junho, no marco do quinto congresso do partido, Lula formulou uma dura crítica ao PT. Contrastou o espírito militante do período fundacional, faz já três décadas, com o estilo imperante agora. “Hoje só se pensa no cargo, no emprego, em ser eleito, e ninguém trabalha de forma militante”. Acrescentou que seria necessária “uma revolução interna para atrair a juventude”.

Três dias após a detenção de Odebrecht, a consultora Datafolha revelou que numa eventual disputa eleitoral o senador Aécio Neves, socialdemocrata e principal adversário do PT, leva dez pontos de vantagem em relação a Lula (35 a 25 por cento). Algo assim nunca tinha sucedido nem entrava nos cálculos mais pessimistas dos dirigentes petistas.

O que está a acontecer no Brasil é bem mais que uma crise económica aproveitada pela direita para expulsar a esquerda do governo. É a desarticulação do projeto de poder elaborado por Lula e pelo seu meio, que lhe rendeu quatro triunfos eleitorais. Esse projeto apoiava-se na aliança com um sector conformado pelo grande empresariado, em quadros da administração federal (incluindo a cúpula das forças armadas), dos sindicatos e do PT. Para fazê-lo possível era necessária a expansão permanente da economia, ou seja, das exportações de produtos primários e, muito em particular, a integração da metade pobre do país através do aumento da sua capacidade de consumo (redução da pobreza).

Tanto as bases materiais como as alianças sobre as que descansou o Lulismo deterioraram-se, ao ponto que o colapso está próximo. Regista-se uma espécie de estrangulamento gradual do governo, uma desarticulação da corrente produtiva de Petrobras e um cerco judicial ao PT, no meio de uma situação económica delicada que levou ao governo a impor um severo ajuste fiscal que não faz mais que aumentar sua falta de legitimidade. A popularidade de Dilma, que não para de cair desde que assumiu o governo por segunda vez, no dia 1 de janeiro, derrubou-se 10% por cento nas últimas sondagens.

Os problemas que enfrenta o quarto governo do PT não podem ser atribuídos aos ataques que recebe dos grandes meios de comunicação e da direita. Isso sempre aconteceu e nunca tinha calado tão fundo na população, incluindo na sua própria base social. Joaquim Palhares, diretor da publicação digital Carta Maior, assegura num editorial que o Brasil está “ante um processo de derrubo do governo democraticamente eleito”. O diretor do meio de comunicação que se define como “um espaço de reflexão da intelectualidade brasileira” explica a situação atual como fruto do “golpismo”, no qual militam a extrema direita norte-americana e regional, os meios de comunicação e a direita local, e do que considera o principal erro do PT: ter deixado intacta “a hegemonia do aparelho de comunicação nas mãos da direita” (Carta Maior, domingo 28).

Chama de qualquer modo a atenção que em ditos círculos editorais não aja nenhuma referência às manifestações de junho de 2013, que foram o início deste processo, ao supor uma viragem radical na política brasileira e corte com a base do Lulismo. O principal intelectual do PT, Emir Sader, faz uso dos mesmos tópicos, ao responsabilizar da crise a “as ofensivas combinadas dos meios de comunicação, sectores do poder judicial e partidos opositores” (Alai, 15-VI-15).

Implosão

Além de ser uma das maiores empresas de América Latina, a construtora Odebrecht mantém estreitos laços com o PT e com Lula. Não só é a encarregada de muitas obras na América do Sul que fazem parte do plano Iniciativa para a Integração da Região Sul-Americana (Iirsa), mas também é a principal responsável pela maioria das obras de infraestrutura para os Jogos Olímpicos de Rio de Janeiro em 2016, como a Villa, o Parque Olímpico e o Porto Maravilha, na baía de Guanabara, entre as mais emblemáticas.

Quando Lula assinou a Estratégia Nacional de Defesa, em 2007, que propunha a criação de um potente complexo industrial-militar, Odebrecht decidiu participar no negócio através de Odebrecht Defesa e Segurança, criada dois anos depois. A “Translatina” joga um papel finque na área de defesa, simultaneamente com a aeronáutica Embraer. Em 2011 Odebrecht comprou a empresa Mectron, líder na fabricação de mísseis e produtos de alta tecnologia para o mercado aeroespacial.

Mas o passo decisivo foi a assinatura, em maio de 2010, de um acordo com a European Aeronautic Defence and Space Company (Eads), empresa da EU, hoje parte de Airbus, para a fabricação de submarinos. Trata-se da segunda corporação do mundo no campo da defesa, com a que Odebrecht criou a sociedade Itaguaí Construções Navais, que levantou um estaleiro e uma base para submarinos. Neste momento estão a construir-se três submarinos convencionais, dos quatro previstos, e o primeiro submarino nuclear.

O acordo com Eads contempla uma ampla transferência de tecnologia, pelo que Odebrecht situa-se no coração do maior programa de defesa de Brasil. Efetivamente, ao Programa de Desenvolvimento de Submarinos (Prosub) corresponde-lhe a defesa da plataforma marítima brasileira onde se albergam as principais reservas de petróleo descobertas no mundo na última década. Se alguém quisesse dinamitar a estratégia de defesa de uma das principais potências emergentes, deveria colocar a Odebrecht sob escrutínio. Talvez isto esteja prestes a acontecer.

Odebrecht é a principal empresa privada integrada no projeto do PT, mas não a única. A maior parte das construtoras (Camargo Correia, Andrade Gutierres, Oas, entre outras) tem um papel destacado no projeto encabeçado por Lula. As quatro empresas citadas empregam 523 mil pessoas no mundo, y só Odebrecht fatura o dobro que o PIB do Uruguai.

Dito de outro modo: sem o concurso das construtoras (às que devem se somar a própria Petrobras, a mineira Vale, a indústria carniça e siderúrgicas), um projeto de desenvolvimento de Brasil como nação independente não tem viabilidade. Ou dito de doutro modo: se para impedir a ascensão da China a Casa Branca idealizou o “giro para a Ásia”, deslocando para essa região importantes forças armadas, e ante a ascensão de Rússia gerou situações de instabilidade como o golpe na Ucrânia, no caso do Brasil parece ter optado pela estratégia da implosão tendo em conta a qualidade e variedade de aliados que a superpotência tem em dito país.

No entanto, daí a considerar que qualquer mobilização social faz parte de um plano da direita, como sustentam boa parte dos dirigentes do PT, media um abismo. Precisamente o grande problema do oficialismo consiste na sua incapacidade para ler corretamente as reclamações de junho de 2013 que podem ser sintetizadas numa melhor qualidade de vida (e de serviços), ou seja, a necessidade de ir para além da inclusão via mercado e consumo, para obter direitos plenos. Algo que não se consegue sem tocar mordomias, coisa que nunca entrou nos cálculos de Lula e do seu partido.

Crise do Lulismo

Uma contradição fundamental atravessa o projeto Lulista. Depois de uma década virtuosa, potenciada pelo crescimento económico mundial, altos preços das commodities, forte crescimento dos países emergentes, fatores que constituíram um modelo de desenvolvimento baseado no consenso entre capital e trabalho, sucedem-se grandes manifestações protagonizadas por jovens que pedem mais. Superadas as facetas mais dramáticas da miséria e a fome, surgem novas demandas “pela esquerda”. Mas mal inaugurou seu segundo governo, Dilma propôs-se acalmar o capital através de um duro ajuste fiscal que ataca grande parte das conquistas da década anterior.

Essa contradição está a permitir à direita (desde a mediática até a evangélica) capitalizar o descontentamento contra o governo. Com o ajuste fiscal o PT arrisca perder uma base social laboriosamente construída, que se tinha mantido fiel ao partido durante as duas décadas anteriores de derrotas e repressões- Nem os três falhanços eleitorais de Lula como candidato à presidência, nem a repressão do período neoliberal, conseguiram dispersar a esse sector da sociedade como o está a fazer o ajuste de Dilma. “Não é um falhanço, é um esgotamento, pois o Lulismo proporcionou ganhos reais à maioria dos brasileiros durante mais de uma década”, destaca Felipe Amin Filomeno, economista e sociólogo pela Universidade John Hopkins (IHUOnline, 25-VI-15).

O problema de fundo é que quando algo se esgota, nada menos que um modelo de desenvolvimento, não se pode seguir adiante colocando pensos. É todo um período que chega ao seu fim. Segundo Filomeno, o que poderia salvar as coisas seria um novo ciclo de reformas (tributária e agrária, entre as mais destacadas) e uma onda de crescimento global. Nenhuma das duas parecem destinadas a suceder a curto prazo.

À escala doméstica, soma-se um facto que não faz mais que agravar as coisas. A governabilidade Lulista baseava-se num amplo acordo entre partidos que se denominou “presidencialismo de coligação”, que somava mais de uma dezena de partidos, a maioria deles de centro-direita, como o Pmdb. Mas essa coligação está em pedaços e é pouco provável que iniciativas importantes do governo passem pelo parlamento mais de direita das últimas décadas.

Se o idílio com os partidos que formaram a base de apoio do governo está destruído, a sintonia com os empresários está fraturada, para além dos escândalos de corrupção. Paul Singer, secretário de Economia Solidária no Ministério de Trabalho, destaca: “Há uma parte importantíssima da classe dominante que nunca foi do PT nem de esquerda, com a que temos interesses em comum. Para nós, do Partido dos Trabalhadores, ter uma indústria crescendo seria importante. Pelo contrário, essa indústria está em processo de contração” (Carta Maior, 26-VI-15).

Efetivamente, a concorrência chinesa está a encolher a que chegou a ser a quinta indústria do mundo. Esse facto cria ao PT problemas com os trabalhadores, um sector chave de sua base social, além de seu aliado industrial. Mas os sucessivos governos brasileiros não têm sabido reagir frente à concorrência chinesa, ante a qual deveriam gravar as importações provenientes desse país, ainda correndo o risco de debilitar uma das suas principais alianças no palco geopolítico.

Em síntese: problemas com os partidos aliados, com sua base social popular e empresarial, e demandas insatisfeitas da nova classe média que não sabe como canalizar, geraram as condições para uma ofensiva da direita e os meios que encontra a Lula (como símbolo de um projeto de poder) sem capacidade de resposta.

A magia não é suficiente

A esperança dos quem sonham com um terceiro mandato de Lula centra-se em torno à construção de uma fórmula do tipo “unidade popular”, como a que propõe o partido espanhol Podemos, que pelo menos não arraste com o desprestigio que têm os partidos políticos. Em opinião de Singer “deveria criar-se uma frente no que o fundamental não seriam os parlamentares senão os movimentos sociais. Seria uma forma para que o PT e seus aliados implementassem as políticas que a população está a pedir”.

A descolagem de Lula respeito do PT e do governo parece indicar que esse é o caminho eleito. O analista da edição brasileira do EL País, Juan Arias, assinala que “está a nascer uma oposição nova que não é a oposição institucional dos partidos, senão da sociedade e das ruas” (O País, 25-VI-15). Parece evidente que a experiência social que levou à criação de Podemos e do grego Syriza é uma chave de leitura inclusive nos grandes meios. Segundo esta interpretação, Lula poderia voltar à oposição para encabeçar o mal-estar social, para se pôr à frente do novo protesto social para catalisa-la, apresentando-se como seu líder.

Mas as coisas não são tão simples. Os milhões de brasileiros que ocuparam as ruas em junho de 2013 em 355 cidades do país sofreram a brutalidade policial na própria carne, e com sua presença na rua despiram a realidade do poder. Numa palavra, politizaram-se. Essa politização pode ser canalizada de diversas formas e, efetivamente, uma parte da “nova classe média” pode seguir os passos dos pastores evangelistas mais reacionários. Outra parte, como já ficou em evidência, segue nas ruas ou aproveita a menor oportunidade para retomar as manifestações. Sabem que a corrupção existe em todos os partidos, e que se roubaram entre 2.000 e 3.000 milhões de dólares das arcas da empresa estatal Petrobras.

Essas multidões, ainda aqueles que voltaram a suas casas e nunca mais saíram às ruas, não são argila macia nas mãos de ilusionistas ou de políticos habilidosos. Nem sequer a magia de Lula pode fazê-los esquecer o que aprenderam em junho de 2013: que para melhorar a sua situação precisam de lutar para reduzir a desigualdade, num dos países mais desiguais do mundo.

 


 

Este artigo foi publicado pela primeira vez em Lalineadefuego, Equador, dia 7 de julho de 2015.

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